sexta-feira, 28 de setembro de 2012


Acerca da proposta oficial da Comissão da Reforma Estatutária da USP

GT Estatuinte

            A Comissão de Reforma Estatutária da USP foi constituída em dezembro de 2005 na gestão da reitora Suely Vilela, realizando seus trabalhos entre 2006 e 2009. Presidida pelo então diretor da Faculdade de Direito (hoje reitor), João Grandino Rodas, ela era ainda composta pelos professores Luiz Roberto Giorgetti de Britto (Instituto de Ciências Biomédicas e atual presidente do Comissão de Atividades Acadêmicas, membro do Conselho Universitário, do Conselho Técnico Administrativo e da Comissão de Ética do seu instituto), Marcos Felipe Silva de (Fac. Medicina de Ribeirão Preto e atual presidente da Fundação de Pesquisas Médicas), Celso de Barros Gomes (Instituto de Geociências, atual chefe de gabinete da reitoria), Glaucius Oliva (Instituto de Física de São Carlos, atual presidente do CNPq, coordenador de centros de pesquisa da Fapesp), Sergio Antonio Vanin (Instituto de Biociências, atual diretor do Museu de Zoologia), Zilda Márcia Gricoli Iokoi (FFLCH) José Roberto Postali Parra (ESALQ) e os representantes discentes Leonardo Alexandre Ferreira Leite (Poli) e Lucas Garcia Von Zuben (Entomologia).
            Uma das principais propostas da comissão foi a alteração do art. 36 do Estatuto, que prevê o procedimento de eleição para o cargo de reitor. Segundo o texto apresentado, pretende-se manter a existência de uma lista tríplice a partir da qual o governador do Estado de São Paulo escolha o reitor e, paralelamente, modificar o processo de constituição dessa lista. O sistema está detalhado na redação proposta do parág. do art. 36:
§1º - Os nomes dos Professores Titulares da USP a serem submetidos à apreciação do Governador serão incluídos na lista, por ordem de votação, mediante eleição a ser feita num único turno pela Assembléia Universitária, composta pelo Conselho Universitário, pelos Conselhos Centrais e pelas Congregações das Unidades e escolhidos entre os nomes apresentados pelo Comitê de Busca para Escolha do Reitor
            Note-se que apesar de mencionar a existência de um único turno, a proposta cuida, em verdade, de dois turnos: no primeiro, o Comitê de Busca para a Escolha do Reitor (CBR) faria uma lista com até 10 nomes de professores titulares; no segundo, o atual colégio eleitoral de primeiro turno das eleições para a reitoria (chamadoAssembléia Universitária), votaria o nome de três candidatos que formariam a lista tríplice a ser encaminhada ao governador.
            No sistema atualmente vigente, o colégio eleitoral do primeiro turno, que é composto pelo Conselho Universitário (CO), Conselhos Centrais (CC) e Congregações, representa cerca de 2% da comunidade universitária (1800 pessoas) e faz uma lista com o nome de 8 candidatos que vão para o segundo turno, que representa 0,4% da USP (400 pessoas) e determina a lista tríplice submetida ao governador. Deste segundo turno participam apenas o CO e as CCjustamente as instâncias nas quais o reitor nomeia direta e indiretamente a maior parte dos membros.
É essa transformação imoral do colégio eleitoral do primeiro para o segundo turnos (que ocorre na USP) e a influência direta do reitor no processo, sobretudo no segundo turno, o que assegura larga margem de oportunidade para que os grupos vinculados à reitoria se reproduzam na máquina universitária. 
            Diante desse quadro, não é preciso muito para constatar que a proposta feita pela Comissão da Reforma Estatutária quer tornar o processo de escolha para reitor absurdamente mais opaco à comunidade universitária e, ao mesmo tempo, seguropara os candidatos dos grupos vinculados à reitoria. É mais fácil cooptar 16 que 1800 pessoas. Ainda mais quando dentre as 16 pessoas que formariam o Comitê de Busca, 9 seriam professores titulares nomeados pela reitoria dentre os membros do Conselho Universitário. Os 7 demais membros seriam 4 representantes das categorias de professores (os titulares teriam mais um representante no órgão), 2 estudantes e 1 funcionáriotodos igualmente membros do CO.
            É evidente que tal composição desrespeita o art. 56 da Lei de Diretrizes e Bases (Lei 9.394 de 1996) que prevê que em todos os órgãos decisórios das universidades públicas a participação docente deve ser de 70% dos votos. O Comitê de Busca teria cerca de 81,5%. Mais que isso, essa proposta constitui violação ao princípio da gestão democrática das universidades públicas, insculpido no art. 206, inciso VI, da Constituição Federal de 1988.
Desde logo, pode-se entrever a estratégia que anima essa proposta. É que, no sistema atual, o grande poder da reitoria se verifica no segundo turno, ainda que ele também se faça sentir no primeiro. Isso significa que a lista-base contendo os oito nomes do primeiro turno é feita com um pouco mais de independência do que a lista tríplice e definitiva do segundo turno, produzida pelo reduzido número de órgãos mais vinculados à reitoria. Ora, o modelo atual ainda comporta um sério risco à reitoria: o de não conseguir inscrever todos os candidatos desejados no primeiro turno, que possui uma composição mais heterogênea, e menos previsível e cooptável.
Daí a proposta de inverter a composição de cada fase. É muito mais seguro para a reitoria determinar, desde o início, quem fará parte da lista de candidatos reitoráveis. Pois tendo inscrito apenas os nomes de seus representantes, pouco importa quem fará a escolha final: suas opções estarão previamente orientadas e limitadas. Por isso, a proposta da Comissão de Reforma Estatutária propõe a criação do Comitê de Busca e transforma o atual colégio eleitoral do primeiro turno em segundo.
Note-se outro dado fundamental: o Comitê de Busca indicará até 10 nomes de professores titulares (§2º, art. 36, da proposta). Em outras palavras, não um número mínimo de candidatos que comporão essa primeira lista. Portanto, nada impede que o Comitê de Busca indique apenas 3 professoresisto é, os nomes daqueles que serão enviados ao governador, deixando àAssembleia Universitáriao papel de mero ratificador. Esse será um meio legalizado de esvaziar o segundo turno, permitindo que 16 pessoas eleitas de modo dupla ou triplamente indireto determinem o destino da USP.
Nem é de se estranhar que a proposta também indique que o Comitê de Busca fará sua escolha dentre as candidaturas a ele apresentadasou fará espontaneamente a indicação de nomes(§5º). Não bastasse a total discricionariedade do Comitê para escolher os candidatos, o órgão poderá ainda optar por professores que sequer se deem ao trabalho de apresentar uma candidatura pública. Até mais que hoje, tudo será resolvido entre quatro paredes.
A aprovação dessa proposta significaria um retrocesso incalculável. Ainda mais antidemocrática do que a atual forma de eleição para reitor, o comitê de busca inspira-se no modelo de governo das universidades norte-americanas sem considerar, no entanto, que este encontra-se em profunda crise financeira, como mostrou recentemente o periódico The Economist. Segundo reportagem publicada em 14 de agosto de 2012, a calamidade financeira dos colleges norte-americanos colocou até mesmo universidades “de classe mundial” como Harvard, Yale e Cornell “em uma trajetória financeira insustentável”.
É significativo que nos anos dos debates e dos trabalhos da Comissão de Reforma, das 23 faculdades, institutos e escolas que se manifestaram, 22 foram contrários às propostas apresentadas (além do representante dos professores assistentes) e 20 se posicionaram expressamente contra o funcionamento do Comitê de Busca.
O único a defender integralmente a proposta foi a Prefeitura do Campus da ESALQ. Tanto o Instituto de Astronimia e Geofísica quanto o Instituto de Física de São Carlos concordam com a existência de um Comitê de Busca, mas entendem que a maioria de seus membros devem ser externos à USP, de preferência estrangeiros. A Faculdade de Ciências Farmacêuticas, o Instituto de Química de São Carlos e a Faculdade de Medicina pugnaram pela manutenção da atual forma de escolha para reitor e contra as pretendidas mudanças. Mas a maioria das escolas, faculdades e institutos que se expressaram, como ECA, FAU, Escola de Enfermagem, Faculdade de Filosofia e de Medicina de Ribeirão Preto, FEA, Faculdade de Odontologia de Bauru, Faculdade de Odontologia de Ribeirão, Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação, IME, Instituto Oceanográfico, Museu de Zoologia, Instituto de Estudos Brasileiros rejeitaram a proposta de um Comitê de Busca e pediram maior democratização e transparência do processo de eleição do reitor.
Para isso, essas instituições sugerem a previsão de consulta à comunidade acadêmica (Escola de Enfermagem), maior aproximação entre a comunidade e o CO (Escola de Educação Física e Esporte), eleições diretas (ECA), descentralização dos poderes dos professores titulares (Escola de Enfermagem Ribeirão Preto), maior participação das demais categorias de professores, que não a de titulares (FAU, Faculdade de Odontologia Ribeirão Preto), a participação das unidades no colégio eleitoral, com representação de 20% de alunos e 20% de funcionários (Faculdade de Medicina Ribeirão Preto), ampliação do colégio eleitoral do turno e da representatividade de estudantes e funcionários no turno (Faculdade Odontologia Bauru, Instituto de Ciências Matemáticas e da Computação), fim da lista tríplice para escolha do governador e aumento de participação dos demais docentes, que não titulares (Instituto de Geociências), participação das unidades e/ouórgãos complementaresno colégio eleitoral (IME, Museu de Zoologia), votação em único turno com candidatura livre (Instituto de Estudos Brasileiros). Não escapou à FEA e à Escola de Educação Física e Esportes que o Comitê representaria, de fato, um primeiro turno velado. A FEA propôs eleições em único turno, porém com um colégio eleitoral composto somente pelo Conselho Universitário e pela Congregaçãoexcluindo, portanto, os Conselhos Centrais, por constatar que estessão fortemente influenciados pelos respectivos Pró-Reitores, candidatos potenciais ao cargo de Reitor.
Conclui-se que as propostas da Comissão da Reforma Estatutária foram feitas à revelia das opiniões dos representantes das unidades da USPe do restante da comunidade universitária. É no mínimo significativo que apesar de ser composta por um membro da ESALQ e outro da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto suas faculdades de origem não tenham concordado com as propostas. É verdade que tudo isso demonstra o quão distante se está de uma democracia real, mesmo no interior da universidade. Mas a aprovação dessas propostas da Comissão de Reforma Estatutária poderia significar o golpe de misericórdia.